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Baiana foi trabalhar na casa do ídolo
Laura Fernandes | Redação CORREIO
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Um canto forte e intuitivo. É assim que o trabalho da baiana Gloria Bomfim, 52 anos, é conhecido. Radicada no Rio de Janeiro há 38 anos, a cantora lançou nacionalmente seu primeiro disco, Anel de Aço, pelo selo Quitanda, de Maria Bethânia, e distribuído pela Biscoito Fino. O trabalho foi apresentado anteontem aos cariocas, em show no Teatro Rival Petrobras.
O álbum, lançado pela primeira vez em 2007 (Acari Records) com o nome Santo e Orixá, reúne 12 músicas inéditas de Paulo César Pinheiro, compositor carioca que já teve seu trabalho gravado por nomes como Baden Powell (1937-2000), Edu Lobo, Elis Regina (1945-1982), Clara Nunes (1942-1983) e Tom Jobim (1927-1994).
O tema das canções gira em torno do candomblé, com seus rituais e simbologias, um universo bem conhecido por Gloria, que é adepta da religião. O que foi dito até aqui, no entanto, é só uma pequena parte da surpreendente história de como a vida da cantora, também empregada doméstica, foi transformada a partir do contato com o trabalho de Paulo César Pinheiro.
Viagem
Nascida em Areal, no interior baiano, Gloria foi criada na cidade de Barra do Pojuca, no Litoral Norte. Seu pai, um comerciante, ia muito a Feira de Santana para comprar mercadorias e, na estrada, seu companheiro fiel era o rádio. Foi em uma dessas madrugadas que conheceu a música Viagem, de Pinheiro e João de Aquino.
“Quando escutei essa música, me apaixonei. Foi ela que me despertou para cantar”, conta Gloria, relembrando que tinha 11 anos quando o pai lhe mostrou a canção que mudaria sua vida. A partir de então, o canto esteve presente em vários momentos de sua infância, a exemplo dos rituais de candomblé, onde soltava a voz.
Ao completar 14 anos, a vida de Gloria tomou um rumo diferente. Ela foi para o Rio trabalhar como empregada doméstica. O canto, no entanto, continuou firme e uniu-se à nova paixão: cozinhar. “O meu normal é cozinhar cantando”, revela a baiana, que na cidade carioca frequentou rodas de samba e cantou durante cinco anos na Portela.
Em um desses dias de trabalho, enquanto fazia as duas coisas que mais gostava, aconteceu uma das maiores revelações de sua vida. Gloria estava na cozinha “resmungando” Viagem, como define, quando a dona da casa passou e disse: “Puxando saco do patrão, né?”. Ligeiramente confusa, a baiana tentou entender o que estava acontecendo. Como não teve sucesso, foi buscar uma explicação.
Lágrimas
Então, o inusitado ocorreu. Sua patroa, Luciana Rabello, vendo Gloria muito preocupada, explicou que a música que ela estava cantando era uma composição do seu marido: Paulo César Pinheiro. Ao perceber que trabalhava há quatro anos na casa do autor da canção que marcou sua infância, não pôde conter a emoção e encheu os olhos de lágrimas.
A partir de então, Gloria e Luciana, com quem trabalha há 22 anos, tornaram-se amigas e o primeiro passo para a carreira artística estava dado. Conhecedora do potencial vocal da baiana - que apareceu em sua casa pela primeira vez como manicure substituta -, Luciana teve a ideia de produzir um álbum com sua gravadora, a Acari Records.
Conversando com o marido sobre o seu desejo, descobriu que ele já tinha o repertório pronto. Pinheiro conta que pretendia gravar um disco no qual seria o intérprete. “Eu abri mão pela força da voz dela”, revela o carioca. “Senti que as músicas seriam mais bem representadas na voz de Gloria do que na minha”, acrescenta. “Ela é uma pessoa de talento impressionante e raro. Completamente intuitivo”, Luciana faz coro.
Encanteria em uma das visitas à casa dos amigos, a cantora Maria Bethânia que conheceu o álbum, ainda com o nome Santo e Orixá, e ficou encantada. “O disco de Gloria Bomfim me trouxe alegrias grandes. Desde que soube que o Paulinho Pinheiro havia escrito canções com suas histórias de caboclo, santo e orixá, entendi que se tratava de alguma coisa forte e sedutora”, conta Bethânia.
Além de relançar o álbum pelo selo Quitanda, a santo-amarense regravou Encanteria e fez “um disco inteiro inspirado nessa canção belíssima, que na voz de Gloria, no seu suingue, ganha muito”, explica Bethânia, referindo-se à faixa que deu nome ao seu disco, lançado em 2009.
O jeito de interpretar as canções e o fato de compreender o que está sendo dito são apontados por Gloria como pontos positivos que resultam da união entre sua religião e as letras que compõem Anel de Aço.
A música foi uma das formas encontradas por Gloria para dar seguimento ao culto aos orixás. Atualmente “uma das vozes mais representativas do canto afro brasileiro”, de acordo com Pinheiro, a baiana, no entanto, não se considera uma mãe de santo e sim uma zeladora. “Nós, seres humanos, não temos condições de ser mãe de santo, é uma coisa muito pura”, defende Gloria.
Em relação ao seu trabalho, Bethânia faz questão de acrescentar que está orgulhosa. “Espero que as pessoas se emocionem com a voz, a qualidade musical, a alegria e o prazer nítido com que todos participaram. A Quitanda está em festa”, comemora.
É com um trecho de Ogum- Menino, segunda música de Anel de Aço, que tomamos a liberdade de fazer referência à história de Gloria e de encerrar esta matéria: “Ogum riscou seu destino/ Não vai ser qualquer.