Cena do espetáculo "Logun-Edé", do grupo Pé de Moleque
É raro ter à disposição um espetáculo, um bom espetáculo que desvende para os leigos, sobretudo as crianças e os jovens, os mistérios do candomblé, a religião dos orixás, base da cultura africana. Pois o grupo Pé de Moleque, criado em São Paulo, em 2007, nos apresenta ‘Logun-Edé, Uma Pequena Yorubópera’, uma agradável ópera mestiça, ou um afro-concerto, ou simplesmente uma ‘yorubópera’, nas três definições da própria companhia, formada por atores e cantores líricos, principalmente da raça negra.
Logun-Edé – explica o grupo – é uma das únicas divindades adolescentes do panteão africano, cultuadas no Brasil. Só isso já vale o voto de louvor e confiança ao espetáculo, que usa um raro personagem teen da cultura afro como alvo para fisgar o interesse justamente da platéia juvenil, tão pouco contemplada com espetáculos teatrais voltados para sua faixa etária e tão pouco interessada, nessa agitada época da vida, por qualquer cultura que seja diferente da sua ‘tribo’. Talvez seja a fase em que os preconceitos mais se revelam e se cristalizam. Daí a importância primeira desta peça, didática sem ser didática, informativa sem ser chata. Leve seus filhos para a experiência de conviver com as diferenças.
O personagem de Logun-Edé (bem interpretado por Carlos Alberto Júnior) é riquíssimo pelo que contém de dubiedade, de potência de vida, de vontade de entender o mundo e suas origens, de busca de afirmação. É o orixá das contradições, em que os opostos se alternam: a sensibilidade e a bravura, o feminino e o masculino, a emoção e a razão. Nada melhor do que isso para falar a linguagem dos jovens, totalmente em fase de descobertas e definições, inclusive as sexuais.
Vejam como a ‘fábula’ é rica em ambiguidades: Oxum, deusa das águas doces e cristalinas, do amor e da fertilidade das mulheres, engravida de Oxóssi, o viril orixá da caça e da alimentação. O destino do menino que nasce, Logun-Edé, é viver seis meses na água com a mãe e seis meses em terra com o pai caçador. Ele alterna esses dois lados opostos, inclusive vestindo saia quanto está com a mãe, detalhe que o espetáculo fez questão de mencionar, na cena em que o rapaz se disfarça de mulher para entrar numa festa proibida para homens. Logun-Edé cresce doce e benevolente como Oxum, forte e corajoso como Oxóssi. É por isso que muitos o consideram o deus da surpresa e do inesperado. É ou não é um tema essencialmente adolescente?
O texto de Bruno Gavranic foi todo escrito em forma de libreto de ópera, em que as canções complementam as falas dos personagens, as letras cantadas acrescentam dados à história contada. Isso é muito difícil de criar, mas o autor não faz feio. Na direção, o convidado Dagoberto Feliz, mais freqüente nos espetáculos do grupo Folias, erra na mão apenas ao abrir o espetáculo, com um trecho introdutório muito longo, ou seja, estou querendo dizer que demora muito para que a peça entre na fábula em si, que é o melhor da história. Poderia ser mais curto e direto, não fosse o início demorado e desnecessário – ainda que este início contenha achados espertos, como o fato de os atores terminarem de ajeitar o cenário à vista do público, recurso de meta-linguagem e até de distanciamento brechtiano, que costuma funcionar muito bem com o curioso público adolescente.
A atriz que faz Oxum, Mawusi Tulani, é linda, expressiva, com um rosto luminoso, um corpo que fala. Pena que seja a que mais desafina na hora de cantar, muito embora, diante de tantos acertos, isso fique quase irrelevante, ainda mais quando se pensa que o espetáculo não tem a menor obrigação de ser artificialmente ‘perfeito’ como os musicais da Broadway. Ao contrário. Seu frescor e sua virtude veem justamente dessa ‘imperfeição’ criativa. O surpreendente narrador loirinho, Leonardo Devitto, é ótimo. Faz um caçador engraçado, tem boa voz, presença desenvolta.
A música composta por Di Ganzá mescla a tradição dos ritmos africanos com um tratamento de arranjos eruditos, sabiamente acompanhando essa linha ‘mestiça’ de um espetáculo que é todo voltado para a aproximação entre os opostos. Grande sacada. Em cena, cinco músicos fazem um carinho adicional à peça: André Fabiano (flauta), Éder Francisco (violão), Renato Antunes (cello), João Nascimento e Juliana Silva Najú (percussão). À certa altura, Oxóssi (Claus Xavier) proclama: “Convoco minha cor para se exaltar.” É a melhor frase, a que mais expressa a vontade do Grupo Pé de Moleque de divulgar a cultura afro. Vamos prestigiar.
SERVIÇO:
Teatro Imprensa – Sala Imprensa
R. Jaceguai, 400, Bela Vista – Centro – Telefone: (11) 3241-4203 begin_of_the_skype_highlighting (11) 3241-4203 end_of_the_skype_highlighting
Somente aos sábados, às 16 horas.
R$ 30,00 (inteira) / R$ 15,00 (meia)
Faixa etária recomendada pela produção: a partir de 6 anos
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